Pessoas que resistiram e viveram com beleza, ainda estão aqui. Nós ainda estamos
Por: Joana Tavares
O filme “Ainda estou aqui”, baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, é todo da Eunice, interpretada pela magistral Fernanda Torres.
Mas eu queria falar um pouco sobre o Rubens Paiva. Minha primeira impressão foi que retrataram ele perfeito demais, o cara gente boa, bom pai, marido, amigo, politizado, alguém que gostava da vida, do trabalho, do Rio, do país. Depois, eu pensei - mas qual o problema disso? A gente não pode querer ser assim? E aí entendi mais ainda porque eu estava chorando tanto e ao mesmo tempo querendo me afastar, criticar, maldizer o personagem: ele lembrou meu pai.
E aqui já imagino alguém dizendo - aff, que prepotência, que arrogância, nada a ver. Mas sim, existem pessoas especiais que fazem a gente amar mais a vida. Nem sei se meu pai teve exatamente aquela personalidade da casa cheia de amigos, se era do tipo que por sabedoria escolheria o Rio de Janeiro e uma casa do lado do mar, se faria o mesmo que o Rubens e seus amigos no contexto da ditadura escancarada: se passaria cartas, acolheria militantes, se jogaria totó à noite com o filho que não teve, se me deixaria ir pra Londres, ou se eu seria a outra filha que ouviria o noticiário junto.
Não tem como eu saber, não tem como ninguém saber quem seria se o contexto, o tempo, o dinheiro, a classe social fossem outros.
Compartilhar humanidade
De todo jeito, o que importa é que senti algo do meu pai ali. Os livros, as músicas, as risadas, a inteligência, a doçura, o carinho especial com cada filho e cada pessoa, a segurança, o amor. Isso sem falar da coragem, resumida naquela frase que algum amigo disse no filme - não tinha como a gente não fazer nada.
Era a ditadura militar e não fazer nada tinha um preço alto demais. Mas o dilema de fazer ou não alguma coisa está em todos os tempos, especialmente nesse país nosso, que exige que sejamos politizados e tenhamos posicionamento. E compartilhar essa humanidade - porque se trata disso, compartilhar humanidade, ser sensível ao outro, perceber o entorno - tem seus riscos, sempre.
Teve pro meu pai, o jornalista João Paulo Cunha, que não se esquivou de escrever suas opiniões por inteiro, fez jus ao cargo que exercia, ao lugar que ocupava, e nos fez pensar mais e melhor, nos colocou perguntas e temas difíceis, e nomeou os poderosos - como Aécio Neves, Anastasia, Bolsonaro, Romeu Zema - com todas as letras.
Ele pediu demissão do emprego que mais amou na vida por ser censurado, saiu do jornal que lhe deu identidade e amigos, mas manteve seu compromisso com o senso crítico e com a integridade. A história dessa demissão repercutiu muito, marcou e inspirou colegas de profissão.
João Paulo continuou pensando, estudando, escrevendo, aceitando as centenas de convites para falar, dar aula, escrever sobre as obras de tantos artistas, compartilhar a inteligência e informação que ele cultivou com alegria e disciplina. Escreveu e organizou livros - o mais recente sendo o “Estado de Arte – João das Neves e Minas Gerais”.
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Foi colunista do Brasil de Fato MG muitos anos e seus textos podem ser lidos em sua coluna. Longe de falar apenas de política, meu pai tinha uma capacidade de misturar assuntos profundos, filosofia, literatura, psicologia com temas da vida do dia a dia.
Rubens também escolheu fazer alguma coisa, manter a integridade de quem era, vivendo sua boa vida e contribuindo com a sociedade. Ele devia ter os defeitos dele, claro, assim como meu pai - não se é homem, branco, meio rico, no século XX sem defeitos - mas eu acreditei naquele ex-deputado boa praça que amava a vida e sabia espalhar esse amor. Eu convivi com alguém assim também.
E por isso me doeu tão intensamente ver o momento em que Eunice percebe que perdeu tudo aquilo. Não só a casa, o dinheiro, o Rio de Janeiro, o lugar social, as festas, o convívio com os amigos, a família completa, mas perdeu aquele amor.
Alegria como resistência
Na cena em que ela desobedece ao repórter e orienta a família a seguir sorrindo, numa foto que era pra ser uma denúncia da ausência do marido, ela demonstra que entendeu algo que eu ainda luto pra aprender. A gente perde muito, muito, tudo muda de repente. Como resume o trecho perfeito da Joan Didion, no livro em que narra a morte do seu parceiro de vida. “A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta pra jantar, e a vida que você conhecia termina".
O filme mostra uma Eunice tão forte, altiva, de uma solidez de alma que me fez sair do cinema admirando-a mais ainda do que ao engenheiro civil assassinado pelos militares. Ela aprendeu a se refazer, foi mãe dos seus cinco filhos, estudou, se colocou presente e inteira numa nova profissão, ainda por cima defendendo povos indígenas. E parece que deu um jeito de fazer isso sorrindo, não deixou a ditadura levar tudo, manteve a tal alegria como trincheira da resistência.
Não sei se eu teria essa tenacidade dela. Não dá mesmo pra saber. Mas presenciar a violência estatal tão de perto, perder tanto e ainda manter o foco no lugar - denunciar os culpados, lutar com os injustiçados, construir a vida e cultivar a alegria, é lição para qualquer tempo.
Além da saudade profunda do meu pai vendo o Selton Mello nadar na praia, saí do cinema com tanta vontade de ligar pra ele e depois ler o que ele teria pra escrever desse filme. Vamos ter que imaginar o que seria e, enquanto isso, o que sinto é o exemplo do meu pai, do Rubens, da Eunice, de tantas pessoas que resistiram e viveram com beleza, ainda estão aqui. Nós ainda estamos.
Joana Tavares é jornalista, militante por um projeto popular para o Brasil e adora comunicação popular, boas perguntas e conversa fiada.
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Este é um artigo de opinião, a visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida