Jovens no Brasil de Bolsonaro: “Está difícil sonhar em um país desse jeito”

Nos 29 anos do ECA, especialistas e jovens refletem sobre futuro dos direitos da criança e adolescentes

Arte: Gabi Lucena

Por Anelize Moreira

Brasil de Fato | São Paulo (SP)

"Com os rumos ditados por esse governo, as portas, janelas ou qualquer saída possível estão fechadas para a juventude do campo. Desde as eleições, Bolsonaro já representava uma ameaça à população camponesa e na prática estamos vendo redução de recursos, aumento da visibilidade de latifundiários e medidas que encurralam o pequeno agricultor e quem precisa e vive da terra", diz o jovem sem-terra Kaioã Marx dos Reis, do assentamento 26 de março, em Marabá, no Pará.

A milhares de quilômetros dali, uma moradora do Grajaú, extremo sul da capital paulista, a também jovem Adriana Silva (nome fictício), de 17 anos, avalia que ações como os cortes na educação e o decreto de armas — medidas tomadas pelo governo Bolsonaro e pela sua equipe —, passam a mensagem de que não há interesse em investir na juventude.

“O Bolsonaro está pensando nele, não em beneficiar quem precisa. Estão tirando direitos nossos, da educação, da cultura. Mas, não é por falta de verba. É porque não querem investir na gente. O nosso país é rico em tudo e com essas ações querem rasgar o nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Se eles fizerem isso, o que a gente vai ter favor da gente, dos nossos direitos?”, questiona.

Em uma fase da vida em que os sonhos começam a crescer e os planos são traçados, o jovem camponês e a jovem periférica têm em comum a falta de perspectivas para o futuro após seis meses do governo Bolsonaro.

No Brasil, 32 meninos e meninas entre 10 e 19 anos são vítimas de homicídio todos os dias. Com isso, o país aparece na primeira posição em número absoluto de assassinatos de adolescentes no mundo, segundo dados do Fundo das Nações Unidas (Unicef).

Diante dos altos índices de violência no Brasil, uma das estratégias apontadas pela Unicef para proteger crianças e adolescentes é investir na educação. E o governo vem fazendo justamente o contrário disso.

Em março, o governo Bolsonaro anunciou corte de R$ 5,8 bilhões nas verbas destinadas às universidades públicas e programas de fomento à pesquisa com a justificativa de investir na educação básica. Além disso, vem acontecendo o esvaziamento de ações voltadas para programas de tempo integral, creches, alfabetização e ensino médio e técnico.

Se para estudar está difícil para trabalhar não é diferente. São 7 milhões de jovens brasileiros subutilizados — o maior número já registrado desde que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) começou a ser apurada em 2012. No primeiro trimestre deste ano, 41,8% da população de 18 a 24 anos fazia parte do grupo dos subutilizados — ou seja, estavam desempregados e/ou desistiram de procurar emprego.

Para as crianças o cenário também não traz esperanças. “O Brasil não é hoje o melhor lugar para uma criança viver”, lamenta Djalma Costa, um dos fundadores do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos, zona sul de São Paulo.

A frase do educador, que tem em sua sala um quadro grande de Paulo Freire, ganha contornos mais dramáticos, quando no mesmo dia da entrevista o presidente da república, Jair Bolsonaro defende nas redes sociais o trabalho infantil.

“O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, afirmou o presidente.

O mais grave é que não é a primeira vez que o ex-capitão reformado despreza o direito de meninos e meninas.

Infâncias roubadas

Apesar de proibido, mais de 1,8 milhão de meninos e meninas de 5 a 17 anos trabalham no país, segundo últimos dados do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE). Do total, 190 mil têm de 5 a 13 anos, sendo a maioria está em situação irregular de acordo com o que está previsto Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Bolsonaro não esconde seu o desejo de descriminalizar o trabalho infantil e disse que disse que só não o fará porque seria massacrado.

Quando candidato à presidência, Bolsonaro atacou um dos instrumentos mais reconhecidos internacionalmente e importantes para garantia de direitos das crianças e adolescentes. "O Estatuto da Criança e do Adolescente tem que ser rasgado e jogado na latrina", disse em agosto do ano passado.

A lei 8.069, criada em 1990, durante o governo Collor, completou 29 anos no último dia 13 de julho e é fruto da luta de organizações da sociedade civil e um instrumento para a garantia de proteção integral a crianças e adolescência no Brasil. Ela inclusive proíbe, em seu artigo 60, o trabalho infantil.

“Bolsonaro é um inimigo dos direitos da infância e adolescência. Ele defendeu o trabalho infantil, está contingenciando e desmontando as políticas educacionais, está intervindo no processo trabalhista que tem a ver com o futuro desses jovens. O governo Bolsonaro já aponta que não veio para favorecer essa população e ameaça todas as conquistas ao longo dos 29 anos do ECA”, avalia o educador.

Nas margens

Kaioã Marx dos Reis, 17 anos, filho de camponeses que vivem no assentamento 26 de março, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), agora vive em Marabá e diz que sempre pensou em aproveitar oportunidades de estudo e trabalho na cidade, para depois voltar para o meio rural. Porém, nesse momento, o desejo do adolescente está cada vez mais incerto.

“Se o governo não olha para as minorias, só reprime e não dá oportunidades, fica cada vez mais difícil permanecer no campo. Nós jovens estamos buscando trabalho, estudo, mas tive que vir para cidade e não tenho perspectiva de retorno com o que está acontecendo no país”.

Ele ressalta que poderia ter estudo e trabalho onde a sua família vive, mas culpa o governo pela não promoção de políticas públicas. “Não temos ônibus escolar, faltam recursos, merenda, ou seja, um ensino cada vez mais precário. Se não temos nada disso, não só os jovens vão ter que sair, mas também nossos pais”, reflete.

Kaioã ajudava na roça, plantando e colhendo uma produção rica de alimentos como macaxeira, abóbora, e milho. Ele conta que da turma de amigos que estudaram juntos com ele na escola rural, nenhum deles puderam permanecer no assentamento. Tiveram que ir à cidade para concluir o ensino médio.

Além da falta de educação, a violência é uma das preocupações. O Senado aprovou um projeto de lei que autoriza a posse de armas para residência e toda a extensão de propriedades rurais. A proposta foi apresentada pelo senador Marcos Rogério (DEM-RO) após o presidente Jair Bolsonaro anular dois decretos editados em maio sobre porte de armas e encaminhar um projeto de lei ao Congresso sobre o tema.

"O medo sempre esteve presente para nós que moramos no Pará por conta de ser um dos estados com mais conflitos agrários e somos marcados por massacres e outras violências. Estando em assentamento e esse medo só aumenta. Todas as ameaças de fazendeiros contra nós sempre se usa arma, imagina se isso for aprovado", teme.

Ele mora na região onde aconteceu o massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 pessoas foram assassinadas por agentes do estado em 1996, e também de Pau D´Arco em 2017.

“Para gente que mora no Pará, o porte de armas é um problema grande, por conta do aumento da violência que atinge principalmente a juventude sem terra e negra. A morte da nossa juventude está declarada, é um tempo de terror, que cada dia que passa fica cada vez mais explícita. Está difícil sonhar em um país desse jeito, em que se tira direitos e se legaliza a morte. A juventude fica desamparada e sem perspectiva”, explica a mãe de Kaioã, Rosângela Reis, assentada e educadora.

A preocupação de Rosângela e de Kaioã encontra eco nas periferias das grandes cidades.

Entre 2007 e 2017, mais de 107 mil adolescentes entre 10 e 19 anos no Brasil morreram em decorrência da violência. Para cada sete vítimas, cinco são negras, segundo dados da Unicef.

“O Brasil precisa de livros, de conhecimento e não de armas”, acredita Adriana da Silva, moradora do Grajaú, na periferia de São Paulo. A jovem participa do Circo Escola Grajaú, projeto do Cedeca, que atende cerca de 210 crianças e adolescentes de seis até 17 anos.

“Eu defendo muito a educação porque ela me transformou. É disso que o país precisa. Eles tiram educação para limitar a gente no espaço que a gente está, para confinar uma mulher como eu no Grajaú. Busco uma educação que me possibilite explorar e, se for o caso, sair daqui e ter outras oportunidades”, aponta Adriana da Silva.

Existem 34 Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) espalhados pelo país. O Cedeca é uma organização não governamental sem fins lucrativos tem o objetivo de promover os direitos humanos para essa população no país, desde 1980.

Adriana participa há 11 anos do projeto, e passou a frequentar, pois a mãe que é diarista trabalhava e não tinha onde deixá-la no período da tarde, após a escola. Hoje faz as oficinas de percussão e dança.

“São famílias de mães solo, que recebem até um salário mínimo, em uma situação de extrema vulnerabilidade. A maioria vêm de famílias sem estrutura, sem condições de moradia, alimentação digna e em risco social e também que já sofreram alguma violência, seja física, sexual ou psicológica”, explica a coordenadora pedagógica do projeto Regiane Soares.

Educação previne

A trajetória de Adriana exemplifica o cotidiano de violação de direitos enfrentados pela juventude negra e periférica. Processos que ela ressignificar através de sua participação em projetos de educação e cultura.

“Sofri violência sexual quando eu tinha 13 anos. O crime foi cometido por um homem que eu considerava um "pai" pra mim. Eu fiquei muito traumatizada e até hoje não consigo ficar no mesmo ambiente que um homem sozinha. Tem coisas em mim hoje que eu estou tentando mudar para que eu consiga ser mais livre. A época do abuso foi quando mais me apeguei no circo, eles me acolheram. Uma psicóloga do projeto me deu apoio e consegui contar depois 3 meses do acontecido”.

Adriana denunciou o crime, mas o homem não foi preso. Ela avalia que se tivesse conhecimento e acompanhamento, não teria ficado tão vulnerável àquela situação.

“Eu não sabia dos riscos que eu estava correndo como uma menina que estava “ganhando corpo”, que as pessoas iriam começar a olhar pra mim com outros olhos de desejo sexual. Se as pessoas pudessem ter a informação, educação sexual e espaços de debates desses temas. Talvez isso nem tivesse acontecido comigo”, afirma.

Em março, Bolsonaro afirmou durante uma transmissão no Facebook que vai retirar informações sobre educação sexual da Caderneta de Saúde e Adolescente, impressa pelo Ministério da Saúde e dirigida a meninas e meninos entre 10 e 19 anos.

A privação de informações pode ter um efeito devastador sobre o desenvolvimento sexual de crianças e adolescentes.

O capitão reformado disse estar determinado a “abortar a ideologia de gênero das escolas” e acrescentou que o Brasil vota como os islâmicos na Organização das Nações Unidas (ONU) sobre questões sexuais.

“Eu não deixei aquilo que aconteceu [violência sexual] me destruir. Não que não me abale, mas não me destrói, sou forte e a gente tem que ser. Eu espero ser um dia aquelas mulheres que eu vi quando eu tinha 13 anos e que me empoderaram”, completa Adriana.

Ficha Técnica

Reportagem: Anelize Moreira | Edição: Pedro Ribeiro Nogueira | Artes: Gabi Lucena | Foto Anelize Moreira / Reprodução Youtube | Coordenação de Jornalismo Daniel Giovanaz