A crise na educação, que se escancara por um diminuto ser vivo ou, mais ainda, a crise no modo de vida capitalista, coloca a todos na condição de partícipes responsáveis pelo que virá. Um dos maiores intelectuais brasileiros, Paulo Freire, tão pouco lido e ao mesmo tempo tão condenado, nunca nos fez tanta falta. Nunca houve tanta necessidade de se pensar os rumos de uma educação que há tempos dá mostras cabais de sua falência.
As mazelas que a pandemia foi capaz de evidenciar não passaram a existir de súbito, elas representam a culminância de processos já existentes. No campo da educação, aponto para o processo de sua mercantilização, agudizada no Brasil pelas políticas neoliberais. Nessa educação-mercadoria, que tem como mote a produção de valor, o educando torna-se cliente e o educador, prestador de serviço – uma receita que, já sabemos, está fadada ao fracasso.
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Professores, sobretudo os da rede privada, experimentam há muito tempo a ingerência de pais, gestores e patrões. Também não é novidade a contínua desvalorização do professor que se manifesta, sobretudo, nos baixos salários e na baixa procura por cursos superiores com formação voltada à docência. O conhecimento seguro, científico, filosófico e artístico, parece perder gradativamente seu valor, dando lugar ao negacionismo e ao relativismo. Intelectuais não são bem vindos e graça entre maioria o culto ao obscurantismo e às formas mais simplórias de organização do pensamento – vide a eleição de Bolsonaro, que representa a ascensão do senso comum em seu sentido mais torpe.
Essa educação-mercadoria foi uma das primeiras a ser impactada com as medidas de isolamento social, como forma de conter o avanço da pandemia de covid-19. Obrigadas a suspender as aulas por tempo indeterminado, as escolas privadas precisaram se adaptar: aulas online, professores conectados, reuniões por aplicativo. Ninguém estava preparado. Do dia para noite professores fizeram de suas casas, sala de aula, compartilhando pela tela do computador a intimidade antes reservada. Contraditoriamente, alunos, acostumados com as telas dos aparelhos eletrônicos, viram-se inaptos a utilizarem-na como meio para aprender. Pais, que antes outorgavam à escola a responsabilidade integral pela educação dos filhos, agora se veem obrigados a participar do processo educacional.
No mundo real, um número imenso de pais se organizam no intuito de reivindicar a redução das mensalidades. Na outra ponta, um trabalho que não foi reduzido, pelo contrário, foi intensificado
Um olhar otimista e ingênuo consideraria que temos uma boa oportunidade de desenvolvimento humano para pais, filhos e educadores. No mundo ideal, pais aproveitariam o momento para se aproximar de seus filhos, reconhecendo o trabalho de seus professores e de toda comunidade escolar; alunos aproveitariam a oportunidade para desenvolver a tão sonhada autonomia defendida pelas Novas Bases Curriculares Nacionais (BNCC); professores aproveitariam para se reciclar, usando seu tempo em casa para fazer cursos e desenvolver novas habilidades tecnológicas de ensino.
No mundo real, o que se vê são professores ainda mais sobrecarregados, buscando a todo custo se adaptar. Horas de planejamento, domínio das ferramentas de vídeo e das plataformas de aulas online. O computador agora é instrumento principal de trabalho e a internet imprescindível, ainda que a conexão desses professores não seja a melhor e que, talvez, seus computadores estejam aquém da tarefa pretendida. A maioria tem filhos em idade escolar e precisa se dividir entre as tarefas de cuidado (intensificada no caso das professoras) e as horas de dedicação à escola (muitas vezes interrompidas por alguma demanda dos filhos). O medo do contágio pelo coronavírus cede lugar ao medo do desemprego, aumentando-se a produtividade e a competição dentro do ambiente escolar que agora é vigiado por pais e gestores que possuem livre acesso às salas de aula virtuais. Repete-se, portanto, a máxima já conhecida: “não pense em crise, trabalhe!”.
:: O uso da pandemia para precarizar a educação pública através de plataformas digitais ::
Nesse mesmo mundo real, um número imenso de pais se organizam no intuito de reivindicar a redução das mensalidades. Na outra ponta, um trabalho que não foi reduzido. A despeito dos trabalhadores da saúde, cuja contribuição é inegável neste momento e em tantos outros, os trabalhadores da educação não escutam os aplausos. Retomamos o que dissemos no início, um modelo de sociedade que transforma tudo em mercadoria não pode reconhecer o verdadeiro valor da educação. É urgente ressuscitar Paulo Freire, é necessário reabilitar o professor como agente de transformação com vistas a uma sociedade justa, é preciso repensar os caminhos.
Luiza Alves é professora de filosofia e sociologia da rede particular de ensino em Belo Horizonte.
Edição: Joana Tavares