Minas Gerais

NORTE DE MINAS

Artigo | O direito de existir dos povos e comunidades tradicionais no Vale das Cancelas (MG)

Para a implantação do projeto da mineradora SAM, pelo menos 11 comunidades serão destruídas

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
Impactos serão sentidos ao longo do Rio Jequitinhonha e do Rio Pardo
Impactos serão sentidos ao longo do Rio Jequitinhonha e do Rio Pardo - Flávia Bernardo / Povos em Defesa das Águas

Caminhar pelo sertão é sempre uma experiência enriquecedora. Faço isso com regularidade e, ainda assim, o sentimento é genuíno, sempre desperta internamente uma sensação de umbigo, de pertencimento. Como dizia Guimarães Rosa, é dentro da gente, no interior de cada um de nós, que o sertão ganha forma, aroma, cor, sons, tessituras.

É dentro da gente que vive e reina o genius loci, o sentido de lugar. Mais do que categorizá-lo ou nomeá-lo, um lugar se define a partir de nossas memórias afetivas, de como vivemos, nos relacionamos e produzimos. E é a partir dessa concepção que nos percebemos ser e estar no mundo.

É complexo e ao mesmo tempo simples compreender que há uma singularidade no conceito coletivo de lugar, de comunidade.  É dinâmica e tradicional, simultaneamente, a compreensão sobre territorialidade. O professor da Universidade de Brasília (UnB) Paul Little define a territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-o assim em seu “território”.

E Little vai ainda mais adiante quando, no intuito de entender a relação particular que um grupo social mantém com seu respectivo território, utiliza o conceito de cosmografia, definido como os saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território.

A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele.

A realidade do Vale das Cancelas

É para dar conta de tamanha complexidade e genuinidade que estive ontem, 20 de junho, no distrito de Vale das Cancelas, localizado no município de Grão Mogol, no Norte de Minas Gerais.  Como vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia de Minas Gerais, apresentei um requerimento para a realização de uma visita técnica junto às comunidades direta e indiretamente afetadas pelo empreendimento minerário controlado pela chinesa Sul Americana de Metais (SAM).

Não foi a primeira vez e, certamente não será a última, que trago a questão da mineração para a centralidade do debate junto à Assembleia.

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Nosso intuito era ouvir e vocalizar a angústia que vive homens e mulheres pressionados por um projeto de mineração que teve origem no antigo Projeto Vale do Rio Pardo. Composto por uma área de mineração e uma usina de tratamento de minério, o Projeto Bloco 8 é um velho conhecido das autoridades ambientais do nosso estado.

Em 2016, o Ibama rejeitou o projeto por inviabilidade ambiental. O parecer técnico que embasou a decisão destacava os riscos às comunidades e ao meio ambiente. O órgão responsável pelo licenciamento, na época, entendeu que o projeto resultaria na geração de volume muito grande de rejeitos, visto que estamos falando do maior empreendimento minerário do Brasil e o segundo maior do mundo.

Isso evidencia a escolha tecnológica incompatível com as técnicas mais modernas de mineração, que buscam minimizar a dependência de barragens de rejeitos. Para a implantação do projeto, pelo menos 11 comunidades serão destruídas e os impactos serão sentidos ao longo do Rio Jequitinhonha e do Rio Pardo.

O parecer dos técnicos do Ibama corrobora o que diz a sabedoria e a experiência dos geraizeiros. Os povos e comunidades tradicionais são os guardiões das águas e da natureza. Todas as águas são uma só água em permanente movimento e transformação. A água é uma entidade viva e os povos e comunidades tradicionais vivem em profunda unidade com as águas e tudo o que as atinge, todos os ataques e ameaças que a água sofre, repercute na existência dessas comunidades, em seus corpos e mentes.

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Além da escuta, a visita técnica tem como encaminhamento prático dar celeridade ao processo de regularização fundiária do território tradicional, um enfrentamento que temos buscado fazer junto ao governo do estado que descumpre o seu papel na implementação de uma política de proteção e salvaguarda de nossos saberes e ofícios ancestrais.

Estamos diante de um Estado que sucumbiu e legitima a ação desmedida de empreendimentos deletérios como a mineração, sustentando uma falaciosa e ilusória concepção de desenvolvimento e progresso que desequilibra, exaure e mata, homem, bicho e tudo ao seu redor.

Vive-se em Minas a mais inconsequente aventura do “finjo que acredito”. A gente tem fingido que os nossos recursos naturais são infinitos e que em nosso DNA está a vassalagem.

 

Leninha é deputada estadual, líder da bancada feminina, vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia de Minas e vice-presidenta estadual do Partido dos Trabalhadores.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa