Minas Gerais

ENTREVISTA

Mestra do Bumba Meu Boi do Maranhão promove oficinas e apresentações culturais em Minas Gerais

Nadir Cruz fala da importância da cultura tradicional para as comunidades e para a sociedade

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
Nadir Cruz - Foto: Fabricio Bento

A conexão entre a cultura popular de Minas Gerais e do Maranhão ficou mais forte nessa semana com a passagem da mestra Nadir Cruz, do grupo maranhense do Bumba Meu Boi da Floresta, por Belo Horizonte e Contagem. Desde o dia 20 e até o dia 30 de agosto, Nadir realiza uma série de oficinas sobre o tambor de crioula e o bumba meu boi, em Belo Horizonte. E no dia 28 de agosto, participa de um evento cultural junto à Irmandade do Rosário dos Ciriacos, em Contagem.

Moradora do quilombo urbano da Liberdade, em São Luís, Nadir Cruz é fazedora de cultura, artesã, turismóloga, educadora social, brincante e está à frente de um dos grupos de bumba meu boi mais tradicionais do Maranhão. Ela estará em Minas Gerais para compartilhar seus conhecimentos e as tecnologias ancestrais em que se inspira.

As atividades são promovidas pelo Ateliê Multicultural, ponto de cultura localizado no entorno dos bairros Milanês, Colorado, Novo Progresso e Morada Nova, na regional Ressaca, em Contagem, na divisa com o bairro Coqueiros, em Belo Horizonte. Região marcada pela escassez de equipamentos públicos culturais e pela carência de ofertas de atividades artísticas gratuitas e acessíveis para comunidade.

A vinda da mestra Nadir Cruz à Minas Gerais faz parte do projeto Ateliê Multicultural, contemplado no Edital Movimenta Cultura 2021 do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura de Contagem - MG.

Brasil de Fato: Como é seu trabalho hoje no Bumba Meu Boi da Floresta de Mestre Apolônio?

Nadir Cruz: Por ser uma Bumba Meu Boi tradicional, do sotaque da baixada, nós aprendemos com o mestre Apolônio, que o Bumba Meu Boi não é só espetáculo, só diversão. Nós entendemos que o Bumba meu Boi, dentro da sua comunidade, que é o quilombo urbano Liberdade, em São Luís, tem uma responsabilidade muito grande com seus brincantes, que resulta em sendo a comunidade.

Esse trabalho social, de formação, de informação, um trabalho de turismo, de geração de economia, de geração de trabalho e renda, ele faz parte da vida cultural do ciclo vital do Bumba Meu Boi.

Como o Bumba Meu Boi contribui para a organização social da comunidade?

Nadir Cruz: Nós procuramos demonstrar para a comunidade e para a sociedade, que um grupo cultural nos ensina a trabalhar a coletividade e o respeito ao próximo. Nós mostramos também que precisamos de educação. Mas qual educação? A formação educacional, a educação na saúde preventiva, conhecer seus direitos, seus deveres, ter o mínimo de noção dos direitos que é garantido ao ser humano.

Por exemplo, direito das mulheres, direito das crianças, com o ECA, direito do idoso. Então, o papel fundamental do Bumba Meu Boi da Floresta hoje é levar à sociedade esses conhecimentos, porque por estarmos colocados em uma comunidade onde todas as mazelas sociais estão presentes nós estamos na ponta da corda. Então, onde o poder público não chega, chega a cultura e esse é um papel fundamental que hoje nós entendemos que o Bumba Meu Boi da Floresta exerce no seu local.

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Na pandemia vocês tiveram uma atuação muito próxima, assistencial, ajudando a comunidade, porque as pessoas não tinham informações. Como que foi a atuação do Boi da Floresta com a comunidade na pandemia?

Nadir Cruz: A nossa comunidade é muito atenta às coisas que vem acontecendo. Quando iniciou a pandemia, que todo mundo ficou atordoado, sem saber o que fazer, buscaram o nosso espaço, o barracão do Boi da Floresta, para informações.

Já que o Bumba Meu Boi é uma aglomeração por natureza, não podíamos fazer movimentação nenhuma com relação ao espetáculo. Então, nós tínhamos uma outra diretriz a seguir, que é o social. Porque nós sabemos que a cultura tem como base, o social, o religioso, o espetáculo, a formação, a informação, a educação, tudo isso é base da cultura.

Nós não podemos fazer as outras bases, mas o social nós conseguimos trabalhar através de algumas organizações nacionais, que já trabalham o social de forma consolidada, como a CUFA (Central Única de Favelas), que nos deu um suporte, acreditou no nosso trabalho e fez várias doações ao Bumba Meu Boi. Nós levamos essas doações até as pessoas que estavam sem poder trabalhar. Esse apoio veio de várias formas, através de projetos da CUFA e através dos empresários locais, que nos procuraram para a entrega de alimento.

Alguns empresários do ramo de armarinhos e tecidos nos procuraram para que a gente costurasse máscaras, na época eram necessárias máscaras de tecidos. Nós conseguimos reunir seis costureiras da comunidade e elas costuraram 2.500 máscaras, que foram distribuídas na nossa comunidade e em outras também, que estavam muito carentes.

Nós entendemos que a cultura, no momento de pandemia, foi o braço forte próximo de quem mais precisava. Graças a Deus, conseguimos chegar àquela comunidade que estava carente, porque não podia sair de casa para trabalhar, a criança não podia ir para escola e muitas vezes a família era coordenada por uma mãe solo e essa mãe sem poder dar o alimento para a sua família. Muitas vezes nós chegávamos em uma residência e o único alimento que aquela pessoa tinha era uma cesta básica.

Durante o período de pandemia, o Boi da Floresta criou várias estratégias para chegar até essas famílias. Uma das estratégias que mais me chamou a atenção, que não foi eu que criei, mas aderi à ideia porque achei maravilhosa, é que cada família que estivesse com grandes dificuldades colocasse uma fitinha branca no portão. Ali estava sinalizando que faltava qualquer coisa ali, alimento, remédio, qualquer coisa, e até o vizinho podia suprir aquela necessidade emergencial. Foi um tiro certeiro.

E isso foi uma estratégia disseminada na comunidade da Liberdade?

Nadir Cruz: Isso chamou bastante atenção, a imprensa local notificou e mostrou para toda a sociedade que o Bumba Meu Boi foi e é uma ferramenta de transformação social dentro do seu local de vivência.  

Em 2019, o Bumba Meu Boi foi reconhecido como patrimônio imaterial da humanidade. Além dos aspectos sociais e de organização comunitária, o que ele representa em termos artísticos, culturais e sociais?

Nadir Cruz: O que é o Bumba Meu Boi? É um complexo de sentimentos. Ele envolve religiosidade, envolve entretenimento, envolve social, envolve educação. Esse complexo de sentimentos fez com que o Bumba Meu Boi se transformasse em patrimônio imaterial da humanidade. Esse título para nós é muito importante, porque reconhece o posicionamento cultural em uma sociedade.

Nós não podemos desconhecer que a cultura está presente no nosso dia a dia. Até o feijão que você cozinha na sua casa é cultural. Ter esse reconhecimento de forma mundial pela Unesco para nós foi um ponto positivo, visto que o Bumba Meu Boi é uma manifestação cultural secular e, no passado, teve muita resistência pela sociedade desse reconhecimento.

Hoje, nós vivemos o dia a dia voltado para cultura e o Bumba Meu Boi tem todo um olhar diferenciado com a classe de menor poder aquisitivo. O olhar diferenciado para aquele jovem, aquele adolescente que está distante da escola, que está iniciando a sua vida com o uso das substâncias químicas. A cultura direciona aquele jovem e adolescente para as instituições que têm a responsabilidade de cuidar desses casos de saúde.

A cultura é auxiliar do poder público, sendo da sociedade civil. Esse reconhecimento como patrimônio imaterial cultural da humanidade pela Unesco só precisa ser um pouco melhor chancelado pelo poder público de cada estado com as suas manifestações culturais, porque nós não podemos deixar de lado se queremos uma sociedade desenvolvida a sua parte cultural.

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Quais as estratégias de resistência o Bumba Meu Boi e as manifestações culturais populares tem utilizado para se manterem vivas nos tempos atuais de tão pouco incentivo à cultura e muito menos ainda a cultura popular?

Nadir Cruz: É verdade, vivemos momentos crucias para a cultura popular, porque diante dos desmandos e do desfazer da cultura - eu estou falando do Ministério da Cultura que se desfez, deixando tudo muito a revelia - uma das coisas importantíssimas da nossa sociedade, é justamente manter essa essência cultural.

O Bumba Meu Boi, o Congado, em Minas Gerais, e várias outras manifestações culturais resistentes, elas só estão de pé porque elas mantêm a sua tradicionalidade, através de seus contos religiosos.

O Bumba Meu Boi do Maranhão tradicional, do sotaque da baixada, que é a área que eu milito, mantém o seu ciclo vital durante o ano. Faça chuva ou faça sol, Sábado de Aleluia tem que ter ensaio. Antes disso não se pega pandeiro porque é Semana Santa, morte de Cristo se respeita. Depois disso, vem o batizado do Boi, véspera do dia 23 para o dia 24 de junho é o batizado, que temos como padroeiro São João Batista. E depois vem a última parte que é a morte do Boi. É a única morte dançante que a gente faz é a morte do Boi. Aí se encerra o ciclo vital do Bumba Meu Boi para que no próximo ano recomesse tudo de novo de forma mais florida ainda.

Isso, se levando em consideração ao ciclo vital do ser humano, o nascimento, a fase adulta e a morte. Para que essa essência seja mantida, e consiga viver até hoje, é preciso manutenção, é preciso políticas públicas, é preciso a conscientização de que é importante fazer cultura e, muito mais, cultura popular. Porque manter Bumba Meu Boi de forma secular, com toda sua tradicionalidade, sua essência cultural, sua história, sua memória, em tempos modernos, digitais, com fortes concorrências, como a tecnologia, é preciso ter muito amor envolvido.

Se não houver amor envolvido, eu falo de amor ao próximo, amor ao ofício, amor ao aprendizado, se não houvesse esse amor envolvido, ah já tinha ido embora há muito tempo, já tinha desaparecido. O que faz o Bumba Meu Boi, o Congado, o Jongo, o Boi de Reis, essas manifestações tradicionais se manterem viva é exatamente isso: o amor e o respeito pela sua essência. 

Edição: Elis Almeida