Minas Gerais

ALPENDRE

Crônica | o outro

“A primeira comichão da desconfiança Paulo Evandro sentiu quando a mulher anunciou: na segunda, fim do home-office”

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
desenho casa bagunçada
"plena pandemia, mas você parece contente em sair. estranho..." - Vectorpouch/freepik https://bit.ly/336Ebak

a primeira comichão da desconfiança Paulo Evandro sentiu quando a mulher, Stella, no sábado, lavando a louça do almoço, e sem conter certa euforia, anunciou:

- na segunda, fim do home-office, meu filho.

- é?

- só meio período, à tarde, mas presencial. se organize, certo?

- plena pandemia, mas você parece contente em sair. estranho...

- estranho, o quê? eu já tava com medo de, com esse negócio de trabalhar em casa, demitirem a gente. voltar é garantia do emprego, ué.

- sei – murmurou.

- bem, como eu disse, se organize, porque não estarei mais aqui à tarde.

a segunda comichão deu-se dois ou três dias depois, quando ao passar pela sala viu a mulher, apesar do esforço para conter o caçula que teimava em puxar o rabo do gato, e ainda cuidando da conexão para a aula online do filho mais velho, celular preso entre o ombro e a orelha, prometer, toda entusiasmada, a quem estava do outro lado da linha que “hoje, você vai ver do que eu sou capaz. beijinho!”.

Paulo Evandro notara desde então, e pelos dias seguintes, que Stella era outra: depois dos cuidados com os filhos até o almoço, ia toda animada tomar banho antes de ir para o trabalho – dera até para cantar no chuveiro –, arrumava-se com capricho, mas o que fazia dançar rumbas a pulga que ele passara a carregar atrás da orelha era não o que via de fora, mas que notava vir de dentro, que parecia lhe maquiar a face: viço. Stella estava radiante. a ele parecia até outra mulher, embora fosse a mesma tal qual a conhecera, e pela qual se encantara, tão cheia de uma vida que a nova rotina da pandemia sugou dela e que a desatenção dele apagou de sua memória, deixando apenas a impressão de que aquela mulher lhe era familiar.

a terceira comichão, mais intensa, foi quando Stella lhe disse que trabalharia também aos sábados, ainda que somente pela manhã, ao que reagiu:

- no meu trabalho não tem isso.

- bom pra você, Paulo Evandro, e também pra mim, porque eu preciso ir e estava preocupada como ia ser com as crianças.

- se eu tiver que fazer algo de última hora para o escritório, vai ser complicado.

- você vai sobreviver, Paulo Evandro – respondeu ela, já impaciente.

- você anda muito diferente, Stella – provocou, em tom de desabafo.

- engraçado, Paulo Evandro, e você continua o mesmo – devolveu ela.

e essa torta de climão durou dias, mas acabou, até que tocou o celular dele e um colega de serviço, ao final da conversa sobre assuntos do escritório, comentou, sem malícia, que vira Stella, outro dia mesmo, saindo do Sunset Flat Service, no Centro.

Paulo Evandro desligou o telefone sem nem mesmo despedir-se do colega, pois sua cabeça parecia picada por marimbondos – por dentro.

tremendo, tomou água com açúcar, tradição sem qualquer serventia terapêutica, que dirá para dirimir o amargor que seus pensamentos lhe causavam, que estendeu ao filho caçula, dando-lhe um pito desproporcional por este puxar o rabo do gato.

de repente, teve uma ideia: como a conta bancária e o cartão eram em conjunto, resolveu conferir, online, os extratos, nos quais descobriu, no cartão, diárias pagas ao Sunset Flat Service, na conta bancária, um depósito de valor pequeno, mas inédito.

transido, desabou no sofá, lá ficando até Stella chegar, quando, resoluto, a abordou:

- bonito, Dona Stella, o tempo todo, eu sabia, era isso – e bateu palmas, ironicamente.

- é isso, o que, criatura? do que você tá falando?

- você tem outro.

- oi?

- por favor, não subestime a minha inteligência. admita, é mais digno.

- você bebeu o que, Paulo Evandro?

- eu, nada, e você, bebeu o que no Sunset Flat Service, com o outro?

- meu Deus, eu não acredito...

- ah, não? então tome as provas – e atirou na mesa os extratos que imprimira.

ela os pegou, passou neles os olhos, e abriu um sorriso nervoso, ao que ele reagiu?

- você ainda ri... ria mesmo, afinal, se você tem outro, eu sou mesmo um palhaço.

- chega! – gritou ela, depois respirou fundo, serenando um pouco os ânimos, e prosseguiu: - sim, Paulo Evandro, eu tenho outro, sim, entendeu?

- entendi. antes, eu só desconfiava, agora eu entendi, obrigado – ironizou.

- não, não entendeu, não entende e talvez não entenda mesmo depois de eu contar.

- sou todo ouvidos.

- eu tenho outro apartamento, Paulo Evandro, porque foi o único jeito de eu conseguir trabalhar direito pra não ser demitida, pois, com as crianças exigindo atenção o tempo todo, mais os cuidados com a casa, faxina, compras, comida, e tudo sem você fazer nada, a não ser me chamar de 10 em 10 minutos pra avisar que algo precisava ser feito não sei com quem, não sei aonde, o meu rendimento caiu de tal maneira que eu ia acabar sendo despedida, e quem ia pagar esse apartamento: você, sozinho?

- e esse dinheiro diferente na nossa conta?

- hora-extra dos sábados, que passei a fazer pra poder pagar o flat.

- meu Deus, você enlouqueceu, só pode...

- não, Paulo Evandro, não enlouqueci, mas ia, se continuasse assim mais um dia.

- eu tava, tô trabalhando, pô!

- e eu tava e tô fazendo o que: crossfit com criança, vassoura e panela?! – explodiu.

- nossa, que jeito de resolver as coisas, hein? parabéns...

- olha aqui, Paulo Evandro, não era só isso, sabe? eu, burra, acreditei que isso também ia lhe fazer ver que não é fácil, que assim, talvez, você entendesse o que eu passo, participasse mais, mas não adiantou, bem que eu disse que você não entenderia mesmo depois que eu contasse. você não mudou nada, e a prova é: sabe o que eu encontrei embaixo do travesseiro do Vitor? um cocô do gato, Paulo Evandro! você continuou com as suas coisas, e só com elas, e danem-se os outros.

- ah, tá, e quem você acha que dá comida pras crianças quando você não está?

- nossa, que nobre da sua parte. você quer o que por isso, o Nobel da Paz?

- dispenso ironia.

- tudo bem, Paulo Evandro, elas são exclusivas a você, me esqueci. sabe o quê? eu vou mudar, e fim de papo.

ele ainda não sabia precisar o que ela quisera dizer com aquilo, apenas tinha nítida a certeza de que o tom não fora de conciliação. e sentiu uma comichão diferente.
 


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Edição: Antônia Sampaio